Amor e Saneamento
1.
Morreu um menino no Piauí.
Depois da primeira noite de exibição de filmes no Teatro Maria Bonita, a grande mesa coletiva de café da manhã estava em silêncio. Os olhares eram quietos e se continham para baixo: o menino morto era membro do ponto de cultura que promovia o festival.
A mesa crescia, e a comida era boa, assim, pouco a pouco, os olhares iam se esquecendo de ser cerimoniosos. Foi daí que veio a explicação: madrugada, ele caminhava de volta para casa na companhia da namorada:
- Me dá o celular!
- Não dou!
- Gritou um tiro no peito.
Graças a uma sobra de compaixão, a menina não fora tocada.
2.
No dia seguinte, já havia alguma leveza. Pelos corredores, contada em sussurros, a história era toda outra. A menina tinha, além do rapaz, um outro namorado. E numa tocaia, que ninguém me sabia explicar e que eu não sabia acreditar; numa tocaia consumada em meio a telefonemas anônimos e uma tentativa de levar à força o menino para casa; numa tocaia feita por amor, pela menina, pelo outro namorado, é que o menino havia morrido.
Pensei que era muito banal se morrer por uma namorada adolescente. Mas talvez não o seja. E, além do mais, no Piauí, as coisas são um pouco diferentes. Lá, quando se vai a um bar ou restaurante e se pede água para acompanhar uma refeição, eles a trazem sem nenhum custo adicional. A água é da bica, não é filtrada, pode vir a ponto de congelar. Mas não será negada: eles a dão de graça. O garçom me explicou:
- Você me pediu água. Não pediu água mineral.
Ele tinha razão. Eu bebi.
Mais tarde disseram que o caso deu no telejornal.
3.
Sente-se um cheiro nauseante quando se desce pela primeira vez na rodoviária de Piripiri. Em São João do Piauí a rodoviária estava (e tenho certeza que ainda está) tomada de moscas. Em algumas ruas dos arredores do Campus da Universidade Federal do Piauí, vê-se esgoto sendo expelido por buracos-canos em calçadas, para em seguida tornarem-se magros filetes corredores das sarjetas.
Cruzando uma rua movimentada de Teresina, deu comigo um mais atrevido desses filetes. O moto-taxista - não haveria de ser de outra maneira - foi indiferente e passou por cima do estreito fio. Entendi que ao invés de bermudas, ali, eu deveria usar calças compridas.
4.
De Floriano, soube do caso de um amigo no Rio. Fazia poucos dias que havia se afastado de sua nova namorada, e, má surpresa, numa festa de sábado à noite, a encontrou aos beijos com um novo rapaz. Se entristeceu, foi buscar uma cerveja, e quando voltou ela já não estava mais: partiu, sem que ele pudesse saber se ela também o havia visto. Mas ela o viu.
No dia seguinte um foi à praia, o outro, ao museu. Mais tarde se telefonaram. À noite, se encontraram, conversaram e decidiram reatar o romance. Ninguém morreu. Não deu no telejornal.
5.
Na minha única noite em Teresina, beijei uma aluna da universidade. Ela me levou a um bar, onde conversamos como velhos conhecidos, como se ali já estivéssemos, e ainda houvéssemos de estar, outras vezes. No meio da noite, a moça quis me dar seu número de telefone. Anotei, e sabia que jamais ligaria. Também me deu um endereço de e-mail. Eu sabia que jamais escreveria.
Era preciso seguir viagem. E, na despedia, a moça me deu ainda mais o que podia, o que tinha para dar: me deixou uma caneta bic da cor preta. E, somente porque foi a primeira que encontrei, é com esta caneta que rascunho estes versos.
3 comentários:
Incrível, Rodolfo.
Lindo. Em todos os sentidos que a palavra comporta.
Nossa, Olfo. Nossa.
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